A PRAÇA DO BOLHÃO
Em 1841 um novo processo de reorganização dos espaços públicos demandou que todos os mercados avulsos da cidade (bem como a feira de plantas e de flores) fossem transferidas para a nova Praça do Bolhão. Esta decisão de mudar os mercados avulsos para a nova Praça do Bolhão foi o resultado directo da inauguração do Mercado do Anjo, em Julho de 1839.
Acompanhando esta nova demanda, recorreu-se ao já elaborado plano de João de Almada que previa a abertura de duas novas ruas (actuais ruas Formosa e Fernandes Tomás) que asseguravam a ligação entre a Rua de Santa de Catarina e a Rua do Bonjardim. Estas duas novas ruas faziam parte um plano mais alargado que visava estabelecer as relações necessárias não só entre as ruas de Santa Catarina e a de Bonjardim, mas também com as principais vias de saída da cidade, a nascente.
Contudo, já em 1835, a Rua do Bolhão (actual Rua Fernandes Tomás) era considerada insigníssima e muito íngreme, descendo da Rua de Santa Catarina até ao regato, onde umas pedras serviam de ponte, para de novo subir até à Rua do Bonjardim. Entre as ruas Formosa e Fernandes Tomás ficava um extenso lameiro atravessado por um volumoso regato, que ali formava um "olho marinho" ou "bolhão de água", que viria então dar nome à Praça.
Embora não seja possível afirmar que a praça então projectada tenha sido, desde início, destinada a albergar um mercado, certo é que o projecto de implantação e arranjo da nova Praça assinado pelo Arquitecto da Cidade Joaquim da Costa Lima (e aprovado em 1837), já faz expressa referência à possibilidade de dividir a praça em quatro quarteirões em que podem distribuir-se quatro mercados de diversos géneros.
A par do desenho para a implantação da nova Praça, o arquitecto Joaquim da Costa Lima encarrega-se também das posteriores correcções dos lados nascente e poente. Desenhou igualmente os planos para a urbanização das zonas envolventes, bem como o prospecto geral para regular as fachadas dos novos edifícios que deveriam limitar a praça dos lados nascente e poente. A nova Praça permitiria então minimizar os inconvenientes resultantes de uma topografia acidentada e da existência de uma volumosa linha de água e, ao mesmo tempo, reforçar o carácter urbano desta zona da cidade. O projecto de Costa Lima parece querer reunir numa nova praça residencial as funções de mercado e de passeio público.
Mapa com o desenho da Praça do Bolhão, no século XIX + Fotografia do antigo Mercado do Bolhão, com a escadaria que dá acesso à Rua Fernandes Tomás.
O EDIFÍCIO DO MERCADO
Durante toda a metade do século XIX, a cidade do Porto vê aumentar a população residente e com ela os problemas de toda a ordem. Este aumento populacional viria, evidentemente, a reflectir-se no espaço urbano, quer pelo alastramento da edificação, quer pela sua concentração em determinadas zonas da cidade, acentuando as carências de infraestruturação higiénica e denunciando a caótica situação criada pelo desenvolvimento à margem de qualquer plano global.
Contudo, só em 1881 o então presidente José Augusto Correia de Barros apresenta uma ampla proposta de reformulação do tecido urbano, complementando os aspectos urbanísticos com a definição de uma estratégia para a sua própria gestão financeira. Um dos aspectos mais salientes desta proposta é o que diz respeito à política de edficação de mercados. Correia de Barros defende não só uma política de edificação de mercados, mas ao mesmo tempo a sua dispersão pela cidade. Assim, propõe que seis mercados fixos complementem a rede de equipamentos existentes, ambicionando uma cobertura extensiva da cidade. No entanto, de todos os mercados propostos só três foram, efectivamente, construídos: no antigo Largo da Aguardente (actual Praça do Marquês), no Campo 24 de Agosto e o denominado Mercado Ferreira Borges.
As funções presentes em cada um dos edifícios – a administração, a circulação e o abastecimento – induzem à exploração do carácter representativo e monumental. São, então, concebidos como entidades urbanas, onde se reequacionam as articulações de espaço publico e privado e de espaço interior e exterior.
No entanto, é reconhecido o fracasso desta politica de dispersão de mercados. Posto isto, a atitude das Vereações que se sucedem durante toda a década de 90 centram-se mais no melhoramento e regulamentação dos mercados existentes, do que na sua reformulação e muito menos na edificação de novas estruturas. Daí que surjam pequenas intervenções nos três principais mercados da cidade: o do Bolhão, o do Anjo e o do Peixe. Estas reformulações das estruturas de mercado são concebidas tendo em conta a zona envolvente e é a restauração desta que, por vezes, promove ou condiciona a transformação das mesmas estruturas.
É o que acontece com a zona do Bolhão quando em 1904 a Câmara aprova o "Projecto de Prolongamento da Rua Sá da Bandeira", desde a Rua Formosa até a Rua Fernandes Tomás.
Prolongamento este que vem permitir melhorar e ampliar o mercado quando combinado com o seu plano de alargamento e reconstrução.
No que se refere ao Mercado do Bolhão, Xavier Esteves (engenheiro que integrava a Comissão Municipal do Plano Geral de Melhoramentos) considera que o mesmo "carece de ser ampliado e tornar-se suficiente para o abastecimento da cidade, por um largo número de anos; ainda que aquela espraie para Oeste, é de supor que num lapso de tempo de 50 anos a densidade da população, no centro e na zona oriental, se conserve sensivelmente como hoje." Defende ainda que o Mercado do Bolhão deverá ser o futuro mercado central da cidade e, numa sessão de Câmara em 1907, apresenta um estudo onde propõe cinco soluções para a edificação daquele mercado. Além destas cinco soluções, Xavier Esteves referia ainda um ultimo projecto (aparentemente menos desenvolvido que os anteriores) que consistia em terminar a Rua Sá da Bandeira na Rua Formosa, e em frente desta e a eixo ficaria a entrada do mercado, que ocuparia 60m à direita e outros tantos à esquerda; a poente deixar-se-ia uma rua como há a nascente, ligando-se as duas por escadas com Fernandes Tomás. Haveria um piso geral ao nível da Rua Formosa, que em frente ao mercado passaria a ter 20m de largura e outro, de galeria, ao nível de Fernandes Tomás, também alargada para 20m, na frente do mercado, que por aí teria a outra entrada. Adiantava ainda que seria um edifício construído em betão armado, com cobertura em "crystal".
É exactamente este último projecto que virá a ser desenvolvido no "Ante-Projecto do Novo Mercado do Bolhão", aprovado em 25 de Agosto de 1910.
Fragmento do alçado Original do Projecto de Correia da Silva na Rua Formosa, 1914 + Alçado da Rua Alexandre Braga (Sul)
DESCRIÇÃO DO ANTE-PROJECTO
No Ante-Projecto, retomam-se as linhas gerais apontadas pelo Eng. Xavier Esteves e concretiza-se um edifício coberto, de piso (à cota da Rua Formosa) e galeria (à cota da Rua Fernandes Tomás), implantado sobre o troço prolongado da Rua Sá da Bandeira (onde se abriam as principais entradas do mercado) e sob a qual se rasgavam umas passagens arqueadas para permitir a comunicação entre as duas alas do mercado ao nível do seu piso: organizava-se no sentido Norte/Sul, expondo duas fachadas principais às ruas Fernandes Tomás e Formosa e outras secundárias a duas ruas, uma das quais nova (a Ocidente). Seria assim, um grandioso edifício que além das duas entradas principais no eixo da Rua de Sá da Bandeira, dispunha de mais quatro entradas nos respectivos ângulos.
O MERCADO ACTUAL: O PROJECTO
As alterações verificadas na orientação política da gestão municipal após a Implantação da Republica em Outubro de 1910, poderão justificar a interrupção dos projectos para ampliar e reformular o Mercado do Bolhão. As perturbações económicas e sociais decorrentes da alteração de regime político não favoreciam muito a implementação de um projecto com a grandiosidade programa.
De facto, o projecto só viria a conhecer uma nova fase, desta vez definitiva, em 1914 aquando da primeira Câmara eleita após a Implantação da Republica. Contado com a participação de dois técnicos da municipalidade – Engenheiro Casimiro Barbosa e Arquitecto António Correia da Silva (sucessor de Marques da Silva, na Câmara do Porto) – promove-se o desenvolvimento de um novo projecto cuja implantação a nascente da rua Sá da Bandeira respeitava a decisão tomada em 1912.
O mercado acabaria por implantar-se no mesmo local do existente, ocupando um quarteirão disciplinadamente definido pelos alinhamentos das ruas Formosa, Sá da Bandeira, Fernandes Tomás e Alexandre Braga.
Seria um edifício coberto, em pavimento e galeria, adaptado à topografia do local para se relacionar com a envolvente através de duas cotas diferenciadas – ao nível da entrada Norte e da entrada Sul – e articulado internamente por escadarias. Nessa relação com envolvente, a edificação propriamente dita (as lojas de comércio fixo) acabaria por se estruturar em duas zonas: uma que se articularia exclusivamente com as ruas envolventes, ou seja, com a zona exterior ao mercado; outra que viria a articular-se exclusivamente com o mercado propriamente dito, ou seja, com o espaço interior. É uma dualidade funcional e programática, que se reflecte na estrutura formal como se duas unidades entrecruzadas se tratasse, e que o arquitecto integra muito bem no projecto, conseguindo garantir um elevado grau de urbanidade e de monumentalidade, que se exigiam a um edifício com um carácter de representatividade tão específico.
É certo que o edifício agora projectado para o Mercado do Bolhão é uma verdadeira emergência urbana, funcionando como elemento estruturador da malha, com a especificidade de se tratar de uma unidade edificada contendo um espaço interior de uso colectivo (e não já uma unidade espacial aberta), sendo verdadeiramente representativo do que é uma concepção de cidade enquanto sistema de entidades.
Alçado da Rua Alexandre Braga (entrada lateral) + Aspecto da Rua Sá da Bandeira, nos anos 30.
PROGRAMA E IDEIA DE PROJECTO
Foi apresentada pela Câmara uma encomenda concreta, com um programa e terreno bem definidos, num sítio com uma já longa tradição mercantil; uma praça rectangular, plana, de nível em relação à Rua Formosa.
A sua implantação, sujeita à diferença de cotas das ruas que o delimitam a norte e a sul e pela consequente pendente das de poente e nascente, condicionou a solução, pois o arquitecto pretendeu colocar entradas nas quatro ruas, a eixo das fachadas; assim, a altura do primeiro piso é desenhada de modo a que sejam possíveis as entradas de nível, tanto à cota da Rua Formosa (para o nível térreo), como à cota da Rua Fernandes Tomás (para a galeria), situando-se as entradas pelas ruas Sá da Bandeira e Alexandre Braga a uma cota intermédia, permitindo o acesso por escada a ambos os pisos do mercado. Esta solução é positiva do ponto de vista do funcionamento interno do mercado, uma vez que facilita as circulações interiores do mercado possibilitando o seu atravessamento público.
O carácter urbano de edifício comercial privado (cujas lojas voltadas ao exterior são autónomas em relação ao mercado) parece corresponder a uma vontade da entidade promotora de esconder o carácter inevitavelmente desordenado, confuso e barulhento dos mercados da época.
A especificidade deste programa, virado ao mesmo tempo para o exterior e para o interior, e a relação de cotas do terreno em que se insere, levantava um problema ao arquitecto. Este via-se obrigado a conciliar, num mesmo edifício, estabelecimentos abertos para as ruas de pendente acentuada e um mercado interior de nível. A solução encontrada privilegia nitidamente as fachadas exteriores, onde a cota de pavimento das lojas acompanha a pendente da rua, de modo a proporcionar uma imagem comercial contínua e uma composição equilibrada dos alçados. No entanto, o aproveitamento do espaço interior só é possível em metade da fachada de cada piso, ficando o restante fechado por paredes cegas, numa solução de recurso desequilibrada.
Este edifício constitui um caso muito particular de um programa tipo: pretende-se construir um mercado, o mercado central do Porto, com pretensões de monumentalidade urbana e constrói-se um edifício que envolve uma praça de mercado. Conseguiu-se dignificar o exterior, mas não o programa de mercado em si. Contudo, apesar desta aparente contradição, a popularidade deste edifício como mercado público foi sempre um argumento indiscutível para a defesa de uma tipologia que recupera, em certa medida, a imagem tradicional de praça de mercado.
Aspecto do Mercado do Bolhão, ainda antes da introdução do passadiço central nos anos 40.
LINGUAGEM
Este edifício é ainda um típico exemplo da dualidade característica dos edifícios públicos da época, procurando conjugar as possibilidades do novo material em que é construído (o betão) e a intenção de continuidade de uma linguagem tradicional da pedra; assim apesar das suas fachadas apresentarem alguns elementos estruturais característicos do uso do betão armado, estes são alternados com a utilização de elementos visualmente mais fortes (como as pilastras que dividem os tramos da fachada) cujo tratamento e decoração procuram referências na linguagem dos edifícios mais marcantes do Porto, por tradição construídos em granito.
O Mercado do Bolhão no presente. Bancas interiores + O mais recente shopping da Baixa, O Gran Plaza, na Rua Fernandes Tomás.
O MERCADO DO BOLHÃO NO PRESENTE
Contudo, o edifício como o conhecemos hoje não corresponde totalmente ao que teria sido inicialmente desenhado por Correis da Silva. Os cortes desenhados em 1914 permitem constatar, na obra realizada, duas importantes alterações ocorridas posteriormente: a não realização da cobertura e a diminuição da altura do edifício, o que coloca a questão de poder não ter sido este o esquema inicial compositivo do edifício.
As posteriores alterações realizadas neste edifício, nomeadamente a cobertura das galerias (em 1924), o seu posterior reforço e a construção da ponte transversal que divide o edifício ligando as entradas nascente e poente (em 1940), contribuíram para que o Mercado do Bolhão apresente hoje, no seu interior, uma sobreposição de elementos estruturais de ritmos e carácter diversos.
NOVAS REALIDADES: O DESVALORIZAR DO MERCADO
A importância dos mercados municipais como principal centro urbano de abastecimento e comercialização de produtos alimentares perecíveis sofreu, ao longo do século XX, uma progressiva desvalorização.
O aumento e consequente disseminação pela cidade do pequeno comércio alimentar e, posteriormente, o aparecimento de grandes redes de supermercados geridas por grupos económicos poderosos, tem vindo progressivamente a impor-se como uma alternativa mais rápida, cómoda e por vezes mais económica. Paralelamente, o desenvolvimento da indústria alimentar motivou o aparecimento de novos produtos no mercado – nomeadamente as conservas, os congelados e os produtos pré-cozinhados – que obrigam, na sua comercialização à existência de novos equipamentos, como sejam as redes de frio de grande capacidade. As estruturas comerciais que não fizeram esse esforço de modernização, rapidamente se tornaram obsoletas.
Efectivamente, o Mercado Municipal como abastecedor da população urbana não é, hoje em dia, um elemento indispensável.
A imagem urbana monumental e simbólica do Mercado do Bolhão, visto através da Rua Sá da Bandeira.
DEFICIÊNCIAS ESTRUTURAIS DO MERCADO DO BOLHÃO (em 1992)
Os problemas que afectam hoje o Mercado do Bolhão não são, no entanto, apenas de desadequação às novas necessidades e hábitos de consumo. O mercado sofre também de deficiências estruturais de base que só podem ser ultrapassadas com uma intervenção de fundo:
- a má acessibilidade automóvel à baixa portuense e a inexistência de estacionamento de apoio ao mercado impossibilita aos utentes o abastecimento em grandes quantidades, pois o seu transporte resultaria extremamente incómodo (problema hoje em dia irrelevante)
- a inexistência de um horário adequado e de uma localização apropriada para cargas e descargas, provocando constantes incómodos ao tráfego envolvente.
- a ineficácia da actual planificação do mercado cuja gestão diária não permite controlar o seu actual carácter caótico, de grande desconforto para o publico utente e para os próprios vendedores.
- o mercado carece também de equipamento que solucione diversos níveis de problemas, como a exposição às condições atmosféricas (que actualmente levam a soluções de recurso bastante inestéticas), a ineficácia dos serviços de limpeza e o próprio desconforto dos vendedores.
- o envelhecimento natural dos matérias de construção, que não possuem mecanismos de manutenção e conservação próprios, agravado pela infiltração de água ocorrida nos últimos anos nas suas fundações.
- o regime de horários actualmente em vigor não aproveita todas as potencialidades comerciais deste mercado, e está condicionado por questões de falta de segurança e equipamento que possibilitem o seu funcionamento em moldes mais alargados.
Apesar deste panorama de mudança, o Mercado do Bolhão não se encontra ainda marginalizado pela população, devido essencialmente a dois factores:
- a sua localização numa área de grande movimento tanto automóvel como pedonal, e de grande vocação comercial; a população residente e a população que trabalha nas proximidades continuam a usufruir do mercado com alguma comodidade.
- a tradição comercial que o Mercado do Bolhão ainda possui para uma geração mais idosa que criou hábitos de abastecimento aos quais não está disposta a renunciar.
A consciência de que a transformação do Bolhão não diz respeito apenas ao edifício do mercado em si, mas a toda a herança cultural arquitectónica e urbanística do século passado tem, necessariamente, de traduzir-se na apropriação e valorização desta herança. Reavivar na população portuense a memória do Bolhão poderá, certamente, levar a reafirmar as suas potencialidades como alternativa de qualidade para o seu abastecimento alimentar e descobrir novas qualidades nas velhas práticas colectivas que, na vivência quotidiana do Porto e do Bolhão, passaram tantas vezes pela memória viva de tradições seculares.
Mas de cento e cinquenta anos de vocação comercial fizeram do Bolhão um património que é, não só o objecto, mas também conceito; porque é monumento representativo de uma realidade colectiva que põe a tónica no "civismo". Como documento da memória colectiva, o Bolhão parece ainda capaz de estimular novas intervenções que, sem porem em causa a sua identidade, possam contribuir para valorizá-lo como património do futuro e, ao mesmo tempo, dar uma resposta aos anseios do presente. Por isso, de um novo Bolhão, cabe esperar não só que conserve a vocação de espaço colectivo, mas também que recupere a capacidade de ser, como objecto arquitectónico, uma referência indispensável à cidade.
Porto Redux ou>(re)habitar a cidade
Seminário entre cidade, arquitectura e património
Abril Maio 2008
OPOZINE + CCRE + MIPA + Dédalo
Porto Redux Releases
Outubro 2008
Texto: Rita Barata [estudante finalista da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto]
Edição: Pedro Bismarck
www.portoredux.blogspot.com